Observando a melancolia no cinema: De Amor e Trevas
- Rodolfo Olivieri

- 5 de jul. de 2020
- 7 min de leitura

A História
A Tale of Love and Darkness ou na versão brasileira “De Amor e Trevas”, é um filme adaptado do livro de memórias escrito por Amos Oz, o qual carrega o mesmo título. É protagonizado e marca a estreia na direção da atriz vencedora do Oscar de melhor atriz (com o filme O cisne Negro) Natalie Portman.
A história se passa em Jerusalém e retrata boa parte da segunda metade da década de 40, mais especificamente 1945, época em que o país se encontrava sob o mandato britânico e antecedia à criação do Estado de Israel. O momento histórico era caótico, Árabes e Judeus em guerra. Entre bombas, tiros, explosões, e todos os horrores que um conflito armado pode proporcionar, o pequeno Amos, na época com 12 anos, vivia sua vida com os pais, a mãe Fania Oz, Polonesa judia de origem rica que escapou do Holocausto e posteriormente casou-se com Arieh Oz, escritor que a conquistou na época em que ambos estudavam devido a sua grande habilidade com as palavras, e também naturalmente pelo fato da jovem e sonhadora Fania fantasiar um casamento com um escritor, a ideal lhe soava romântica, uma vida com beleza e que compensava ser vivida. Tal funcionamento, radical na ambivalência entre realidade e fantasia, é estruturante na personagem e reaparece em diversas outras situações que serão citadas adiante.
A história é contada a partir do entrelaçamento das memórias Amos Oz, ainda vivo, hoje com 78 anos, contando a partir dos seus 12 anos, ou seja, um senhor contando de forma ressignificada a história vivida por um menino, si próprio neste caso.
Amos vivia cercado de livros e histórias, os livros do pai que forravam a casa e se acumulavam em pilhas ao longo de toda a sala, e as histórias da mãe, que a partir de suas narrativas convidava o filho para conhecer própria sua vida, seu passado, sua personalidade, e os fatos e valores que lhe eram importantes. Para Fania, as histórias aparentemente funcionavam como uma porta de acesso para seu interior, a qual ela abria e fechava de acordo com seus desejos e possibilidades. Para Amos, esta era a oportunidade de fantasiar a partir da fantasia do outro e salvar a mãe, seu grande e eterno objeto de amor, dos males que ela própria não foi capaz de se salvar. Inclusive foi a partir da indisposição da mãe para lhe contar histórias que Amos começou a perceber que as coisas não iam bem.
A Melancolia

Marilene Carone comenta na introdução de Luto e Melancolia (da editora Cosac Naify) que Freud naturalmente não ignorava a tradição ocidental antiga que associava a melancolia, já explicada de diversas formas ao longo da história, a um traço de genialidade. “Homem de gênio, poeta, criador, homem destinado a trazer sobre os ombros o sentimento do mundo, de humor oscilante, dado a extremos.”. Ela descreve os episódios melancólicos como batalhas que são travadas no inconsciente, aonde há um impulso para abandonar o objeto perdido e uma tendência da libido em se manter ligada a ele.
Freud (2011) define a melancolia como um estado que se caracteriza por um “desânimo profundamente doloroso, uma suspensão do interesse pelo mundo externo, perda da capacidade de amar, inibição de toda atividade e um rebaixamento do sentimento de autoestima”. O autor ainda ressalta que este estado é muito semelhante ao vivido durante o luto, como a diferença que neste “é o mundo que se tornou pobre e vazio, na melancolia é o próprio ego.”. Naturalmente nada do que foi exposto até agora aponta para um quadro melancólico, no entanto, ao longo da película esta vivência ficará evidente, especialmente na personagem principal.
O filme demonstra diversas vezes que as pessoas que ali moravam viram a sua qualidade de vida, segurança e estabilidade ruírem diante de seus olhos, pois se convivia diariamente com barulhos de explosões e bombas, escassez de recursos e alimentos, civis e militares morrendo diante de seus olhos. Os homens eram convocados a prestar serviços no exército e as crianças recolhiam garrafas pelas ruas para a confecção de molotov’s.
No entanto, Fania fez o máximo esforço para poupar o filho desses horrores, nunca mentiu, mas evitava certos assuntos, e principalmente, evitava “carregar” o clima da casa.
Fania possuía um funcionamento psíquico que a mantinha ancorada em suas fantasias, talvez algo próximo do conceito Winnicottiano de defesa maníaca, em que o ego lança mão de mecanismos de defesa como a idealização e a negação para tentar preservar seu equilíbrio e seu funcionamento. Desde pequena ela sonhava com o "profeta", um homem sábio, másculo, capaz de ser um judeu de fé exemplar, hábil nos afazeres manuais e extremamente intelectualizado e sentimental, talvez seu sonho e de todas as mulheres. No entanto casou-se com Arieh, homem de poucos recursos financeiros, nada viril, escritor de livros que empacam nas prateleiras e pouco sensível às suas fraquezas e aos seus pedidos silenciosos de atenção e ajuda.
O maridos (as idealizações)

A esposa de fato nunca chegou a se queixar verbalmente do marido, mas é nítida a insatisfação de sua escolha. Sobre isso, Freud relata que no melancólico as mais violentas queixas e sentimentos negativos sobre o outro se adéquam, com algumas modificações, muito mais à própria pessoa. Tal entendimento é central na compreensão deste quadro clínico. “Para eles, queixar-se é dar queixa, no velho sentido do termo. Eles não se envergonham nem se escondem, porque tudo de depreciativo que dizem de si mesmos no fundo dizem de outrem.”. O autor chega a dizer que “a sombra do objeto caiu sobre o ego”, e perder o objeto se transforma na perda do próprio ego. Fania sofria pelas suas próprias más escolhas ou pelo marido ter os colocado nesta deplorável situação?
Arieh Oz mostrava-se um homem preocupado com questões políticas, rude, e fraco. Julgava seu próprio pai como fraco, dizendo que ambos chegaram a apanhar e serem humilhados pelos mesmos garotos na escola. No entanto, Arieh justificava (ao menos verbalizava tal justificativa para o filho, ainda que não acredite verdadeiramente) que tais absurdos aconteceram por serem judeus sem estado, situação que logo se alteraria.
Em dado momento, aparentemente a personagem começa constatar a realidade, defrontando-se com o fato de que aparentemente seus sonhos e desejos infantis jamais se realizariam. O profeta idealizado é diferente do marido, a terra prometida nada se parece com Jerusalém, a guerra avançava sem sinal de trégua, e até mesmo a sua casa, espaço protegido e seguro, estava comprometida, pois abrigava diversas outras famílias que perderam tudo em ataques. Sua sala era dividida por pedaços de pano e estava forrada de colchões. A beleza havia partido, tanto a das fantasias quanto a da vida real, e as trevas começam a abduzi-la. Em dado momento ela chega a dizer para o filho: “não ter filho é trevas, e essa se relaciona com o esquecimento, com a falta de memórias, falta de filhos, falta de luz”.
Freud afirma que o trabalho de luto se dá na prova dada pela realidade de que o objeto amado já não existe mais, “e agora exige que toda a libido seja retirada de suas ligações com esse objeto.”. Tal trabalho é árduo, e na hipótese do indivíduo passar por ele de forma satisfatória, o ego fica novamente livre e desinibido. A melancolia também pode ser uma reação à perda de um objeto amado, “quando os motivos que a ocasionam são outros, pode-se reconhecer que essa perda é de natureza mais ideal”, não se sabe ao certo o que foi perdido, mesmo com a morte real de outra pessoa, o que dele se perdeu?
Amos, que a cada cena aparece mais e mais enamorado pela mãe, agora é seu único fio condutor à luz, a mãe passa inclusive a dormir em sua cama, talvez em uma tentativa de evitar o marido, talvez tentando nutrir-se da última fonte de afeto, inocência e bondade que lhe restava, talvez por todos os motivos….
Os Sintomas

O estado de Fania piora a cada dia: dores de cabeça frequentes, enxaquecas, insônia, falta de apetite, de desejo sexual, choro constante e uma anedonia que lhe impede cada vez mais de seguir a vida. O marido toma uma decisão talvez não muito diferente do que alguém faria hoje em dia, setenta anos depois, e chama um médico para lhe receitar remédios. Amos faz questão de lhe oferecer silêncio, alimentos na cama e atenção. No entanto nada disso é o bastante para reanima-la.
Freud afirma que há na melancolia predominantemente um delírio de inferioridade, do ponto de vista moral que se completa com: “insônia, recusa de alimento e uma superação, extremamente notável do ponto de vista psicológico, da pulsão que compele todo ser vivo a se apegar à vida.”
A situação piora consideravelmente quando uma amiga próxima de Fania é assassinada covardemente e sem motivos, em sua própria casa. Mais uma vítima do conflito, mas para a protagonista é quando o luto chega de fato em sua vida, fazendo com que as perdas reais e simbólicas se misturem, ampliando um quadro melancólico que já presente e crescente.
Fania se refugiava em si, na sua solidão, no seu silêncio. As histórias que antes eram contadas deliberada e prazerosamente agora lhe aprisionam, e parece que isso é tudo que lhe resta; sua capacidade imaginativa que a faz mergulhar em suas fantasias, e sua vida lhe aparece simbolicamente como cenas de afogamento (talvez em seus próprios pensamentos, em sua melancolia) e com o céu sendo forrado por pássaros até ficar totalmente negro, sem possibilidade alguma de passagem de luz.
A mania

Apesar da tristeza, Fania ainda possui recursos egóicos para tentar encarar a implacável realidade, e após uma boa noite de sono e um sonho com seu profeta idealizado orando no alto de uma montanha, acaba, ainda que maniacamente, retomando os afazeres cotidianos e tenta voltar à sua vida, a cuidar do filho. Volta inclusive a lhe contar histórias.
A autora já citada, Marilene Carone, afirma que este processo maníaco citado acima pode ser definido como o alívio de ter se livrado (temporariamente) da identificação com o objeto odiado e a liberação do excesso de energia acumulado, resultando em excitação, excesso de autoconfiança e hiperatividade. Freud aponta que a mania se apresenta de uma forma diferente da melancolia, mas que os conteúdos são iguais, “ambas as afecções lutam com o mesmo “complexo”, ao qual provavelmente o ego sucumbe na melancolia, ao passo que na mania o ego o dominou ou o pôs de lado.”.
Ele explica ainda a alta disponibilidade energética como um movimento de superação à perda do objeto (ou o luto pela perda, ou talvez o próprio objeto) aonde “todo o montante de contrainvestimento que o doloroso sofrimento da melancolia atraíra do ego para si e ligara fica agora disponível.”. Exemplifica perfeitamente: “Na medida em que, como um faminto, o maníaco sai em busca de novos investimentos de objeto, ele nos demonstra de um modo inequívoco sua libertação do objeto que o fez sofrer.”.
A realidade / O final

Infelizmente a realidade se impôs rapidamente e sua melhora durou pouco. A pobre mulher, menina romântica de outrora, não possuía mais forças para encarar Jerusalém com sua vida ordinária, sua miséria, suas guerras, armas, seu casamento infeliz, sua falta de beleza. Como o próprio autor relata: “Quando viu que a vida não deu certo, tornou-se amante da morte”. Aos 38 anos comete suicídio com seus próprios remédios que não conseguiram salvá-la.
Comentários