Hermann Hesse para atravessar o isolamento e a vida paralisada
- Rodolfo Olivieri

- 7 de jul. de 2020
- 4 min de leitura

crédito: arte da capa por /alina.sanches/
Antes de mais nada gostaria de situar o momento histórico em que este texto é escrito. Junho de 2020, pandemia, quarentena (se é que ela realmente existiu no Brasil) 57.658 mortos no Brasil até hoje, 500.882 mundo, 10.072.616 de infectados e crescendo. Vale ressaltar que estes são os números oficialmente notificados, tema que certamente nos levará à uma outra espécie de comissão da verdade, quem sabe daqui algumas décadas. Guarde esses dados para o final do texto.

Ouço e leio em algumas entrevistas, lives e conversas alguns intelectuais falando sobre um “freeze”, congelar, termo propício ao momento que estamos passando, pelo menos pelo que é possível avaliar com os nervos à flor da pele. Confesso que prefiro algo que pensei começo da quarentena, a criogenia, processo no qual corpos são congelados na expectativa de que alguma tecnologia do futuro ainda não conhecida provenha com o renascimento.
Ok, corte brusco para outra cena. Nessa mesma mesma época foi (re)lançada no Brasil pela editora Todavia “Knulp: três histórias da vida de um andarilho”, escritas por Hesse em 1915, antes de todos os clássicos que conhecemos e amamos, livro curto e saboroso que apresenta o gérmen do que estava por vir em sua obra. Como foi bom me deparar com um texto “novo” de Hesse em português.
Andarilho? Andar? Andar para onde? Só se for imprescindível, e de máscara. Para mim foi desconcertante ler sobre os temas que aparecem nesse livro: andar, caminhar, seguir, sentido, amizade, leveza, trabalho, desapego. Logo agora, preso em casa sem poder caminhar em direção aos meus familiares, amigos, analisandos…

Knulp é rico e valoroso na temática do caminho, assim como em toda a obra de Hesse, seja em “Demian”, com Emil Sinclair dividido entre a pureza e a nostalgia dos pais e do lar em oposição ao instigante mundo do portão para fora apresentado pelo jovem e sedutor Demian. Seja em “Sidarta”, com o protagonista que leva o nome da obra e seu grande amigo Govinda, dividido entre o santo caminho de Buda, dos Hindus, da meditação, e a vida secular dos homens do mundo, a caminhada que o levou até o rio, a doce contemplação da vida. Seja em “O lobo da estepe”, com o próprio lobo Harry Haller, sua amiga, amante e amada Hermínia, a voluptuosa Maria, Pablo com seu saxofone e seu erotismo dos homens da noite, os psicodélicos e o teatro mágico: ”só para loucos, a entrada ao preço da razão, para os raros somente”. Seja ainda em “O Jogo das Contas de Vidro”, com José Servo e sua jornada à Magister Ludi, o mestre do grande jogo, o longo caminho e o final arrebatador.
Todos personagens citados procuravam seu caminho, assim como Hesse o fez. Filho de mãe indiana e pai missionário protestante, foi atrás dos mistérios do oriente buscar as origens de sua mãe. Na mágica infância descrita em “A infância do mago” já se fascinava pela erudição do avô, quem o colocou no rastro da literatura, e com as dezenas de pegadas que deixou em suas obras, fragmentos de si apresentados para nosso desfrute, personagens incansáveis, erráticos, que não cansam de se perder e se encontrar.
Knulp (o protagonista e não o livro) caminhava, um amável andarilho, e em um dos contos procura um velho amigo em busca, ao que faz parecer na primeira das histórias, de uma cama quente para aquecer-se e recuperar a frágil saúde. Um andarilho de humor leve e sagaz, “um belo gato que pode morar em uma casa arrumada”. Knulp é polido, bem arrumado, com um certo modo lúdico, frágil, “tudo seu tem um toque de nobreza”. Tal qual o próprio Hesse. Knulp era um viajante, um caminhante, com amigos e abrigos garantidos por onde caminhava seguia a máxima oriental: viva o verdadeiro desapego, aproveite enquanto tiver e quando partir o faça sem sofrimento.
Nosso protagonista trazia em si uma chaga, uma frustração amorosa da juventude, sua amada queria um “homem de verdade”, e não um pensador. Com isso abandonou os estudos e se entregou ao mundo. Foi trocado por um artesão.
A incapacidade de confiar o colocou knulp na estrada, no caminho, na reflexão e nos pensamentos, sem nunca poder parar. Uma tragédia, uma escolha digna de um lobo da estepe, como Hesse, como Haller, radical. Uma postura legitimada por Deus, este que tantas vezes deve ter o interpelado: “eu não queria que você fosse de nenhum outro jeito além daquilo que é”. Este era seu delírio, sua fome, sua fragilidade, seu tempo, seu Deus, sua mãe e seus amores, todos eles e ao mesmo tempo nenhum deles.

Hesse acertou e errou, mas o caminho errante que vale por si só. Teve dúvidas, assim como duvidou Sinclair que não foi nem santo nem besta. Assim como Sidarta que não se achou nem como homem santo nem como homem de negócios. Errou como Haller que não se encontrou nem na burguesia nem na anarquia e como José Servo, insatisfeito como Magister Ludi e como professor. Acertou e errou, mas seguiu.
Novo corte brusco a partir do início. Caminhamos até aqui: pandemia, mensalão, sitio em Atibaia, triplex, Bolsonaro, lava jato, vaza jato, mudanças climáticas, capitalismo brutal, economia em frangalhos, racismo, miséria, guerras, pastores multimilionários, Papa falando para ninguém na missa da páscoa, gabinete do ódio, rachadinha, Queiroz, milícias, Olavo, 300 pelo Brasil, grilagem, desmatamento, genocídio indígena. Caminhamos.
A obra de Hesse fala sobre caminho, sobre se perder e também sobre se encontrar. Fala sobre se buscar na religião, na literatura, na burguesia, no anarquismo, no desapego, na erudição, no oriente e no ocidente, e na psicanálise (adendo meu), mas buscar, errar e acertar, à nós não sobra mais nada. Não sabemos o que nos aguarda. Covid 20, 21? Segunda onda, terceira, vacina? Parques abertos, parques fechados, fim do capitalismo? Início de um novo capitalismo? Sucatização do corpo em prol dos avatares digitais dos perfis nas redes sociais? Não sei e ninguém sabe, mas voz também é corpo e presença, plataforma da palavra.

Caminhemos meus caros, lendo Hesse, Freud ou o que quer que seja. Como diz Hesse pela boca de Knulp: “podemos observar a estupidez das pessoas, podemos rir delas ou sentir compaixão, mas é preciso deixar que sigam seu caminho”.
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