Ciclo: O retorno do recalcado psicodélico
- Rodolfo Olivieri

- 10 de jan. de 2023
- 5 min de leitura

Após um longo tempo sem produzir textos para este site, retorno hoje com um convite especial. Ao longo do segundo semestre do ano passado (2022) realizei, em parceria com o IPEP instituto de psicanálise do qual integro o corpo clínico, um ciclo de lives chamado: O retorno do recalcado psicodélico.
O tema abordado ao longo das 4 conversas que compõe o ciclo foi a relação entre as substâncias psicodélicas e a saúde mental, aproximando especialmente do campo psicanalítico. O intuito foi construir um passo a passo em formato de vídeo que sirva tanto para os colegas "psi" quanto para o público geral entusiasta e de outras áreas. Para isso tratamos de elaborar um trajeto, que se iniciou nos conceitos e ideias básicas acerca das substâncias até o final, ou seja, até a integração, momento posterior à experiência psicodélica.
Sobre o nome do ciclo, o retorno do recalcado psicodélico, usamos uma noção clássica freudiana: o retorno do recalcado, processo profundamente ligado à estrutura neurótica, como metáfora para tratar do processo de aniquilamento sofrido pelas populações originárias que faziam (e fazem) uso de diversas dessas substâncias e que sofreram com constantes processos de extermínio, físico e simbólico, durante processos colonizadores. Buscou-se a todo custo doutrinar, padronizar, ou como diz Ailton Krenak, enfiar goela abaixo o ingresso para o "clube da humanidade", uma humanidade racional, branca e europeia. Em troca vieram as ofertas de sempre: bíblia, álcool, capitalismo e remédios.

No campo acadêmico das pesquisas psicodélicas houve também um período próspero e efervescente que durou da década de 50 do século passado até o fim dos anos 70, com um fim repentino e motivado por questões principalmente políticas, ligadas à popularização das substâncias, especialmente o LSD, e um intenso combate à subversão antiguerra e ao prazer.
Com o início do século XXI houve um renascimento científico psicodélico. Cientistas em universidades espalhadas pelo globo estiveram presentes nesse belo recomeço. Desde então o movimento só cresce e se espalha, com presença forte de universidades e pesquisadores (as) brasileiros (as), como a Unicamp, USP e UFRN. A repercussão cultural, midiática e econômica também seguem numa crescente, com direito a colunas em jornais e revistas, reportagens em grandes veículos (até nos conservadores) de televisão, série em netflix e milhões circulando com fins de pesquisa e comerciais.
A psicanálise por sua vez, que esteve intensamente envolvida com essa primeira fase de pesquisas do século passado, não deu as caras neste retorno. A produção acadêmica e cultural ligando os temas são escassos, com muitos entraves, muitos preconceitos e muito desconhecimento, de ambos lados, impedindo com que esses dois campos se reencontrem. A psicanálise, que possui um campo fértil de produção acerca da toxicomania e do abuso de substâncias químicas, parece não ter se atualizado quanto às especificidades das substâncias psicodélicas que em nada se assemelham às demais já conhecidas dos textos e da clínica (a cocaína, o álcool, o tabaco e o crack) em nenhum critério: nos efeitos, nas formas de consumo, no potencial de vício, nos jogos pulsionais e repetições, e ao invés disso contém um rico caráter de impulsionador de atividade desejante, enriquecimento de sonhos e de associações livres, podendo funcionar como ferramenta para o sujeito que busca se dizer.
Com o intuito de ajudar a diminuir a lacuna que separa os campos, o ciclo idealizado e conduzido por mim, um psicanalista, e sob a chancela de um instituto de psicanálise, contou com 4 vídeos, todos disponíveis no youtube, sendo:
1° - Introdução: que os trabalhos recomecem. Neste dia recebemos o pesquisador e biólogo Dr. Lucas Maia para uma aula introdutória sobre os psicodélicos, explicando questões básicas e proporcionando um excelente ponto de partida para quem quer conhecer e entender: quais são as substâncias, como são, diferenças e semelhanças entre elas, efeitos, questões de segurança, relação substância x sujeito x setting, A compreensão do material aqui apresentado é fundamental para a compreensão dos temas abordados nas próximas lives.
2° - Psicoterapia assistida, microdose e modelos terapêuticos. A aula foi do psicólogo Dr. Bruno Gomes, que falou sobre o uso terapêutico de substâncias, pesquisas em saúde mental, microdosagem, psicoterapia assistida e muito mais. Essa live aconteceu no mesmo período em que foi ao ar a série "Como mudar sua mente" da netflix. A série de Michael Pollan, baseada em seu livro com o mesmo título, aborda de forma muito vibrante (e no meu ponto de vista demasiado propagandista) as substâncias, seus efeitos e resultados nos tratamentos de diferentes patologias. Ao ver a série muitas pessoas reacenderam a esperança sobre sua vida e saúde mental e a possibilidade de encontrar um remédio, um tratamento efetivo. Nesta live foi possível entender quais são as possibilidades de uso e de tratamento no contexto atual brasileiro.
3° - Pode um psicodélico interessar ao psicanalista? O psicanalista Daniel Kazahaya aceitou o convite de, sendo o primeiro psicanalista convidado para o ciclo, colocar de fato a psicanalise na pauta. Se nas duas primeiras conversas a ideia foi introduzir o tema e falar sobre a proximidade com a saúde mental, aqui aterrissamos em definitivo no campo psicanalítico. Além de explicar sobre esse primeiro processo de recalque envolvendo povos originários da américa latina que utilizavam cogumelos mágicos de forma sacralizada e que foram vitimas de um processo de genocídio epistemológico, fisico e simbólico, adentrou na psicanalise a partir de diversas frentes: atividade desejante, espaço para (voltar a) sonhar, psicodélicos como substâncias que promovem associação livre, importância da experiência vivida e da palavra. Enfim, temos aqui um prato cheio para o aprofundamento e compreensão da ligação que há entre a psicanálise e os psicodélicos.
4° - Integração: e depois? Na ultima conversa do ciclo recebemos o Dr. Luis Tófoli, psiquiatra e professor da FCM (Unicamp) e grande expoente do renascimento psicodélico em solo nacional. Neste episódio falamos sobre a integração. Trata-se do momento ou processo posterior ao uso da substancia psicodélica e que busca, como o nome sugere, integrar aquilo que foi vivido, sentido e pensado durante a experiência. Para além da conceitualização clinica, a proposta foi abordar, a partir de uma perspectiva crítica e sociológica, a tendência cooptada pelo discurso capitalista de utilizar certos psicodélicos (especialmente a microdosesagem) para aumentar o foco, a criatividade ou desempenho profissional, além da busca de "reintegrar" um sujeito à sociedade, ou seja, ajusta-lo em uma sociedade desajustada. Ressalto que nenhum tipo de uso precisa e ou deve ser condenado, porém acredito que utilizar substâncias psicodélicas para focar no trabalho é o mesmo que um GPS, que pode te guiar para lugares impressionantes, como peso de papel.

Espero ter conseguido ao longo destes poucos parágrafos apresentar a tônica e o sabor do ciclo. Uma proposta até então inédita de apresentar ao campo psicanalítico os psicodélicos, substâncias que estão cada vez mais presentes nas ruas, nas festas, nas cerimônias, nos centros urbanos e consequentemente nos relatos de pacientes e analisantes. Um conjunto de substância que apontam para o futuro e que engrossam o caldo da narrativa que, assim como a dos povos originários, veem na capacidade de sonhar e de fantasiar um novo amanhã uma saída possível para nossa tragédia, nossa ânsia e nosso encurtamento de todo e qualquer porvir.
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