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Capitão Fantástico: Fugir para se encontrar

  • Foto do escritor: Rodolfo Olivieri
    Rodolfo Olivieri
  • 5 de jul. de 2020
  • 14 min de leitura

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O filme se inicia com uma mata fechada, cenas da vida animal, da natureza, um veado caminhando livremente. Aqui, as questões relacionadas às pulsões humanas e ao instinto animal já começam a aparecer, tanto nas suas semelhanças quanto nas diferenças. A cena corre com um jovem rapaz, coberto de lama, camuflado, abatendo o animal ferozmente, e abrindo sua garganta com uma faca. Talvez a vitória do intelecto ante o instinto que se deixou abater. Trata-se de um batismo, um batismo de sangue, um ritual de passagem. O menino que matou o animal agora é um homem, título dado por seu pai e legitimado frente toda à família. Talvez com o intuito da introjeção ritualística da força, assim como nas sociedades tribais, o coração do animal é devorado.  

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Capitão Fantástico tem como tema central a vida de Ben, casado com Harper, pai de 6 filhos, que após o adoecimento da esposa diagnosticada com transtorno afetivo bipolar, resolve se isolar em uma floresta norte americana com os filhos, afastando a todos da vida em comunidade, das cidades grandes, do consumo, dos desejos impostos pelo capital. Ideia antiga, um clichê, que a princípio soa como uma excelente ideia.  

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Frédéric Gros, filósofo foucaultiano francês, em seu livro Desobedecer (2018) explica longamente, e através de diversos exemplos (economia, mito de Antígona, Eichmann e o nazismo, estudos forjados com acadêmicos), que a obediência, a submissão à ordem política, se dá primeiramente pelo hábito, pela inércia passiva. por conformismo. Nada melhor então do que mudar de ares, correto? Talvez a questão seja mais complexa.

O autor supracitado destrincha a resistência ao conformismo as dividindo em duas tradições principais: a ironia cética e a provocação cínica. A primeira é sustentada nos pensamentos de Montaigne, Descartes e Pascal, com uma certa tranquilidade interior frente às normas exteriores, algo como “deixar-se quase acreditar”, respeitar as regras, mas mantendo em seu interior o livre exercício do raciocínio e do juízo: “não acompanhar com adesão a idiotice das convenções”.

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A segunda se fundamenta em desobedecer publicamente, em ato, tal como Diógenes, o “sábio do barril”, que ironizava Alexandre em praça pública, masturbava-se em publico, arrotava, mostrava seu sexo, provocava os costumes, o conformismo. Parte de Diógenes o princípio de “alcançar as verdades elementares da vida” pelo exercício do despojamento, da privação material, “a verdadeira vida, selvagem, rebelde, liberta do inútil”. Para ele, essa é a única forma de alcançar a humanidade. Sem cascas, sem mímicas sociais.  

Os autores Aldous Huxley e George Orwell são citados no livro, pois ambos escreveram e influenciaram diretamente a cultura com distopias sobre o achatamento das individualidades por meio da uniformização do homem, da diluição das diferenças.  

Gros destina dois capítulos ao tema da desobediência civil e de seu maior expoente, Henry Thoreau, apoiando este conceito na máxima: “é a negação de ser governado assim”, distante das ideias e vontades que escolhemos nas urnas.

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Henry David Thoreau


Thoreau, no século 19, se propôs a viver uma “existência natural”, e para isso abandonou a vida na cidade e construiu com as próprias mãos sua cabana nas terras de um amigo escritor. Passou os dias lendo, escrevendo, se aquecendo, procurando comida, ou seja, gerindo a manutenção da própria vida, de forma autárquica. Sua obra, especialmente no século vinte, no pós guerra, foi considerada uma denúncia à alienação e um modelo de vida vigorosa. Sua obra principal “Walden” ou no Brasil “A Vida nos Bosques” (1854) é citada até os dias atuais, como nos filmes “Sociedade dos poetas mortos” (1990), “Wild” (2015) e “Into the wild” (2008). Para Thoreau “na vida selvagem está a preservação do mundo”.  


Capitão Fantástico mostra que para aquela família os dias são levados de forma excitante e ativa, com caça, plantação, treinos físicos intensos, meditação, defesa pessoal e estudos, muitos estudos. O pai opta pela educação domiciliar, e faz bem este papel, ensinando aos filhos desde filosofia até física quântica, passando por leis e primeiros socorros.   

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Já de início é exposto o drama da mãe, Harper, internada em um hospital psiquiátrico. É dado a entender que não se trata da primeira internação, e que seu histórico é longo e já conhecido de todos. A explicação dada aos filhos é pautada na neurologia: “problemas serotoninérgicos, problemas de neurotransmissão”. Apesar desse estilo de vida ser oferecido, pelo menos aparentemente, aos filhos sem nenhuma margem para opção, Ben não dá a entender que este modo alternativo de vida contribuiu para o adoecimento de Harper, pelo contrário, foi uma tentativa de cura. Estaria o problema no mundo? Nas demandas sociais? No sentimento de não pertencimento? Seria o “mal” algo externo que pode e deve ser evitado?  

Aqui aparece a primeira “rachadura” no projeto de felicidade: Por que os filhos são afastados da mãe? por que sua condição de adoecimento não é posta em pauta?


Um dos filhos, o mais velho, Bodevan (cada filho ganhou um nome único no mundo) se percebe em um drama relativamente comum da adolescência (o personagem parece ter cerca de 17 anos): não consegue se relacionar com mulheres. Ao sair, fato raro, da mata em que vivem, depara-se com uma extrema timidez ao encontrar garotas da sua idade. Seu sentimento de não pertencimento é evidente. Ele se queixa com um misto de raiva e vergonha para o pai: “só sei o que está nos livros”. A constatação é óbvia; isso lhe gera angústia, e com uma aparente melhor capacidade de avaliação do mundo que o pai, compreende que não é possível ser um sujeito realizado sozinho, ou apenas com a família. Vem à cabeça do espectador atento o questionamento se houve por parte do casal algum planejamento futuro para os filhos. Como eles ficariam? Eternamente presos em família, mantendo entre si relações incestuosas?

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Em “Totem e tabu” de 1913/1914, Freud aborda o tema do incesto de forma original, mas pautado em contextos históricos e antropológicos, expondo o quão ancestral, fundamental e complexa é essa questão. O termo tabu traz em si dois sentidos contrários: ‘sagrado’, ‘consagrado’, e ‘misterioso’, ‘perigoso’, ‘proibido’, ‘impuro’. Majoritariamente está relacionado aos deuses, demônios, à morte, ou mesmo a governantes ou figuras de autoridade. O autor aponta que, curiosamente, mesmo os sujeitos menos providos de cultura (sem idioma, sem confecção de ferramentas, sem arte) como os aborígenes Australianos, possuem escrúpulos e evitam de forma ativa as relações sexuais incestuosas, sendo a penalidade comum para a quebra da regra a própria morte.


Nas tribos da Melanésia, se irmãos se encontrarem ao ar livre, um deles terá de fugir correndo ou esconder-se. Ou ainda, um garoto que desconfia que pegadas na estrada são de sua irmã, “não as seguirá, como ela também não seguirá as dele”. Em tribos da Sumatra, “o pai nunca fica sozinho com a filha em casa, nem a mãe com o filho”. Em diversas tribos ao redor de todo o mundo, a relação entre sogra e genro é ainda mais problemática e a privacidade é ainda mais evitada, fato que assim como Freud cita, alguns de nós ocidentais entenderíamos como ato de sabedoria, pois evitaria tensões existentes e desejos desconcertantes.

Fica a impressão que esse é um assunto angustiante e recorrente à todas culturas humanas, como se fosse algo inato, algo a priori. Seria esse o caso? O estudo da psicanálise nos ensina que o primeiro objeto de amor do homem é o mais proibido: a mãe, e em famílias saudáveis a lei da exogamia é posta rigorosamente, fazendo com que o sujeito se liberte dessa atração incestuosa. A proibição é clara: evitar relações sexuais com membros do clã totêmico do sexo oposto, no nosso caso, com os membros da família. O inconsciente mantém sua força desejante e a consciência faz seu trabalho, nos afastando do ato que seria traumático demais, impossível de manter de forma saudável.   


Bodevan, o filho mais velho, recebe cartas de aprovação nas melhores faculdades, processo todo realizado sem o conhecimento do pai, que hipoteticamente seria contra tal ato. Ele quer deixar a casa, e isso é mais do que óbvio, algo que não é visto apenas por Ben. O elemento do novo, daquilo que é externo, vindo de fora, é sempre tratado de forma problemática, pois junto com o novo vem o consumo, os desejos, e o descontrole ante o mundo idealizado.

Logo adiante o temido acontece, a mãe, Harper, comete suicídio. A notícia é dada pelo pai aos filhos bruscamente, a explicação sobre a morte é dada secamente, sem afeto. Relian (filho adolescente, aproximadamente 11 anos)  sente raiva da mãe que os deixou, mas também saudade, raiva do pai, tudo misturado. Ambiguidade já conhecida do luto.

A mãe sofria de transtorno afetivo bipolar, com episódio de psicose pós parto do primeiro filho. O pai de Harper, sogro de Ben, homem ligado ao direito, rico, tradicional e poderoso, sempre culpou Ben pela “perda” da filha, pela sua saída de casa, pelo seu afastamento da sociedade, e agora pela sua morte prematura.

Logo após a morte, Ben sonha com a esposa. No sonho ela diz que ama a ele e aos filhos, assim como tudo aquilo realizaram juntos. Ela aparece com uma aparência saudável, sorridente, aparentemente feliz. Um presente do inconsciente? Alívio das culpas? realização de um desejo? Ou trabalho do recalque? Que ainda não estava pronto para efetivamente viver o luto e se propor à auto análise dos possíveis erros cometidos, das chances perdidas de ajudar a esposa?


Ben aparece em diversas cenas incentivando os filhos a terem bons argumentos, estudar, pensar, articular ideias. No entanto, ele próprio assume uma postura superior, incontestável, por vezes agressiva, tirânica. Tanto em relação aos filhos, quem já há uma noção de superioridade a priori, quanto com outros adultos, pessoas que dialoga e familiares da ex esposa que entra em contato. Há sim, uma fina camada de polidez, uma educação no trato. No entanto é evidente para os espectadores atentos a auto noção de superioridade moral e intelectual que o personagem lança sobre os demais.

Não é errado afirmar que Ben possui uma visão niilista frente à vida. Aqui, falo da noção Nietzschiana de niilismo, em que a vida é levada sem ídolos e sustentações metafísicas. É fato que ele comemora com os filhos o “Noam Chomsky day”, uma festa em que é celebrada a vida do linguista e filósofo, relevante nas questões sociais, (segundo o próprio Ben), mas outros ídolos sociais como o Natal, e mais especificamente o Cristianismo, são absolutamente rechaçados e tratados com ironia e descaso.

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Noam Chomsky


Em outros pontos da película a contradição da vida escolhida fica escancarada. Por exemplo, o pai sempre faz discursos sobre os males do consumismo e a dificuldade que há na vida moderna para as pessoas se socializarem por outras vias que não o consumo material, no entanto, ele próprio não consegue manter relações com ninguém além dos filhos, não é capaz de se manter minimamente agradável nem mesmo por algumas horas na casa da ex cunhada, na mesa de jantar. Para ele, qualquer tipo de relação horizontal parece ser impossível, tornando frágil os méritos da escolha pela saída em retiro meio à natureza. Confesso que sou levado a crer em alguns momentos que Ben apenas escondeu a verdade na realidade, ou seja, a realidade da sociedade moderna é realmente materialista, consumista, injusta, cruel e patologizante, mas a causa secreta do exílio pode estar situada em outro lugar, como na necessidade de levar uma vida sem que seus valores sejam postos a prova, sem que os desejos de consumo batam em suas janelas, neste caso, janelas das televisões e dos smartphones.

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Fica a pergunta: a única forma de sonhar um outro mundo, mais feliz e saudável, é com a negação deste mundo? Não há uma terceira opção? A mensagem que o filme se propõe a passar, e inclusive o faz para o espectador que enxergar apenas a camada mais superficial, é bonita: é possível resistir ao mundo, não precisamos aceitar tudo passivamente. Mas não se trata de uma manobra fácil. Nossos ideais são reativos, datados, condicionados. É fácil mudar de casa, de cidade, de rotina, mas os conflitos definitivamente nos acompanharão.

No texto “O mal-estar na civilização” de 1930, Freud se debruça sobre a relação conflituosa que há entre as forças pulsionais e as demandas da cultura, nos alertando sobre os caminhos, atalhos e processos que percorremos para tentar equilibrar tantas urgências.    

A religião é um desses caminhos. Ela nos promete compensação numa existência futura se dermos conta das pulsões agressivas desta existência. Correndo o risco de minimizar uma estrutura tão ampla (como a religiosa) aponto o trecho: “tudo é tão patentemente infantil, tão estranho à realidade, que, para qualquer pessoa que manifeste uma atitude amistosa em relação à humanidade, é penoso pensar que a grande maioria dos mortais nunca será capaz de superar essa visão da vida”.

Sabemos que a realidade é demasiada árdua para nós, com incontáveis sofrimentos e decepções. Para encarar tudo isso, lançamos mão de uma série de “medidas paliativas”: “derivativos poderosos, que nos fazem extrair luz de nossa desgraça; satisfações substitutivas, que a diminuem; e substâncias tóxicas, que nos tornam insensíveis a ela”. Considerando tal contexto, aquilo que tratamos por “felicidade” nada mais é do que uma faísca de satisfação realizada em um mar de necessidades represadas. O sofrimento, pelo contrário, é comum, cotidiano, e vem por três fontes principais: “nosso próprio corpo (decadência, envelhecimento), do mundo externo (ambiente, forças, natureza, fragilidade do homem) e dos nossos relacionamentos com os outros homens, que talvez seja o mais penoso”. Criamos a cultura à nossa própria imagem, as regras sociais, as regras de convívio, a linguagem, então custamos a crer que nossa criação nos traga tanta dor.  


Freud aponta que há, no entanto, métodos para aplacar nossos sofrimentos, sendo os mais comuns o químico (consumo de drogas) e a satisfação das ilusões (na vida imaginativa), longe da realidade. Lutando por um pouco que seja de equilíbrio, deslocamos as condições de sua satisfação, as conduzimos para caminhos mais controláveis e bem aceitos: ciências, artes, ideologias. Métodos de grande valor para a manutenção da vida cultural.

Retornando ao filme, neste ponto o grande “motivo” é mostrado, o “chamado da aventura”, descrito por Joseph Campbell no seu monomito, teoria que aponta que todos os contos de herói seguem a mesma estrutura narrativa: a partida, a jornada e o retorno.


Harper sempre deixou claro o desejo de ser cremada, assim como prega a filosofia budista que ela seguia, além de optar por um enterro com música, dança, em que sua vida fosse alegremente celebrada, após a cremação seus restos mortais deveriam ser jogados em uma privada de banheiro público e dado descarga. Sua família, estruturalmente cristã, não respeitou esse desejo, fazendo uma cerimônia na igreja e um enterro tradicional. As crianças desejam resgatar a mãe, fazer com que seu último desejo fosse atendido. Ben, após relutar muito, finalmente aceita resgatar a mãe para cremá-la, correndo o risco inclusive de ser preso, dadas as ameaças e o poder do ex sogro.

No caminho, todos param em uma lanchonete de beira de estrada para almoçar. Os filhos, alguns pela primeira vez, expostos aos sabores e prazeres da vida capitalista, claramente demonstram interesse por comer alimentos nada saudáveis: pizza, hambúrguer, Coca-Cola,  coisas industrializadas. O pai os tira prontamente do local, como se isso fosse algo a ser veementemente proibido, o mal externo, o mal a ser combatido, o mal do mundo.


Em uma das cenas, talvez a mais emblemática sobre a diferença entre a educação e escolarização dada em casa, de forma crítica, e os jovens pré-adolescentes comuns americanos, é posto em pauta a tendência de Ben em não “infantilizar” e “alienar” os filhos, explicando o mundo exatamente como ele é, mesmo nos temas espinhosos, como estupro, holocausto. Ele nega a hipótese de metaforizar, tornar os conteúdos ilustrativos, sublimar. Tudo é dado de forma crua, direta. Enquanto isso, seu cunhado prefere amenizar as verdades ao explicá-las para os filhos, com o aparente preço de criar filhos em uma “bolha” de mentiras, bolha de proteção, infantilização. Isso os desprepara para a vida adulta? A cunhada, irmã de Harper, é pontual em apontar as falhas na educação oferecida por Ben, dizendo que crianças devem ir para a escola, que escola não é unicamente local de aquisição de conhecimento, mas também de troca, de noções de hierarquia. Ben não se convence, e em uma simples comparação entre sua filha de 8 anos e os filhos de 13 da cunhada, prova que sua criança aprendeu a pensar, a criticar, a elaborar temas, discutir, algo que os pré-adolescentes frequentadores das escolas comuns estão longe de conseguir.


Os sonhos com a esposa falecida continuam. No segundo, mais simbólico, Harper aparece feliz, talvez da mesma forma que era em vida, ao menos  nos momento hipomaníacos, e ele pergunta a ela: “você está feliz?” Ela responde que sim, de forma carinhosa e suave. Ela faz a ele a mesma pergunta; ele pensa, e coloca em seu pescoço um colar de contas Budista (japamala) e se cala. O conteúdo de desejo no sonho é evidente: ser “aprovado” pela esposa falecida, legitimado pelas escolhas que fez, escolhas talvez que não tenham sido exatamente as feitas pela esposa (dado que aparecerá no filme). O trabalho de repressão é tão evidente quanto, pois ao colocar o japamala em seu pescoço, a realidade, a lei, a instância superegóica se faz presente, remetendo ao fato que ela morreu, desejava ser cremada, e isso precisa ser providenciado. Além do mais, “nem sonhando” ele consegue se afirmar feliz, satisfeito.


O transtorno mental da mãe não é efetivamente explorado nos filmes, como por exemplo com recursos de flashback que poderiam mostrar ao espectador cenas passadas. Mas é dito por Rellian que a mãe tinha surtos psicóticos com idealizações sobre matar agressivamente os filhos. Ele culpa expressamente o pai por “enlouquecer” a mãe, a obrigando a levar a vida de um jeito que ela não necessariamente planejava. O filho não consegue perdoar o pai, pois julga que ele não ajudou a mãe, que causou seus problemas de saúde. O que realmente aconteceu não é contado. No fim das contas, a verdade não é tão relevante como as impressões e marcas que ficam.

O fato da mãe realmente não desejar essa vida para os filhos se mostra por Bodevan ter passado nas faculdades mais importantes do país, obviamente com o apoio da mãe, que cuidou da parte legal e se responsabilizou pelo menor. Ben obviamente não valoriza nada disso, apenas acusa o filho de ter mentido, de ter escondido, de estar fazendo tudo às escondidas. Aqui pode-se pensar sobre uma das noções mais intrigantes da trama, pois tratam-se de papeis atuados de forma completamente invertida. Enquanto a mãe pensava na vida fora de casa, nas relações exogâmicas, o pai apenas faz esforço para naturalizar uma vida, costumes, regras, que são efetivamente artificiais, falsas, insustentáveis, como o próprio filme mostrará.    

O avô das crianças, pai de Harper, aponta o fato que as crianças não estão prontas para o “mundo real”, mas aqui vale uma análise deste “real”. Real é conseguir um emprego? Ou ter boa saúde? Saber escalar, meditar, prestar primeiros socorros, saber caçar, se orientar em uma floresta? Mas o preço é se isolar do mundo e de todos os prazeres comerciais que todos queremos? E quanto ao estudo acadêmico, viagens, emprego, bens, confortos, produtos?  

Jack, sogro de Ben, pede a guarda das crianças. O que é prontamente negado pelo pai. Em uma tentativa desastrada de “fuga” da casa do avô, Vespyr, uma das filhas, se acidenta gravemente, quase ao ponto de ficar tetraplégica. Ben cai na real sobre a educação que está oferecendo, sobre os riscos, sobre sua covardia de encarar o mundo, e ao explicar para os filhos que falhou, e que deixará o avô cuidar deles e lhes prover uma vida de merecidos confortos, diz uma das frases mais belas do filme:  "Foi um lindo erro, mas um erro”.

Ben abandona a casa do sogro e os filhos. Finalmente entra em luto, finalmente pode se dar ao direito, sozinho, de sofrer, de ser irracional, infantil, frágil. Ele corta a enorme barba que ostentava, transmitindo uma aparência mais jovem, um excelente recurso apresentado pelo diretor para mostrar as mudanças do personagem, agora menos falocêntrico, menos masculino, menos poderoso.  

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Os filhos optam por fugir da casa do avô para ficar com o pai, agora nesta nova versão. O corpo da mãe, em um manobra arriscadísssima, é exumado, roubado, e finalmente recebe o fim desejado, com tudo que tinha direito: cantoria (sweet child o mine em uma maravilhosa versão executada pela família), festa, crematório e dispensa do corpo em local público de pouco importância, uma descarga de banheiro de aeroporto, mais precisamente.   

O filme termina de forma suave, equilibrado, harmônico, satisfatório para os personagens e para o espectador, e ajustado tanto com às demandas da família quanto as do mundo. Pai e filhos tomam café da manhã em uma casa relativamente simples, sem smartphones, sem correria, sem alimentos sobrecarregados de açúcar. Os filhos aguardam para ir à escola, com seus livros, mochilas e alimentos relativamente saudáveis. Nem a vida utópica da mata nem a aceitação cega das demandas insanas patologizantes do mundo moderno. O pai entende que pode haver uma espécie de “reconciliação” com a civilização, com a cultura, com as leis, ainda que os margeando, na resistência, na borda, mas reconhecendo como a realidade é. Ele finalmente olha satisfeito para os filhos.  

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Referências Bibliográficas:

CAMPBELL J. O Herói de Mil Faces. Editora Pensamento: 1989

FREUD S. Totem e tabu e outros trabalhos - Volume XIII (1913-1914). Arquivo digital - Disponível em: <http://www.freudonline.com.br/category/livros/volume-13/> acesso em sete de Dezembro de 2018

FREUD S. O Futuro de uma Ilusão, O mal-estar na civilização e outros trabalhos -XXI (1927-1931). Arquivo digital - Disponível em: <http://www.freudonline.com.br/livros/volume-21/vol-xxi-2-o-mal-estar-na-civilizacao-1930-1929/> acesso em sete de Dezembro de 2018

GRÓS F. Desobedecer. Ubu Editora - São Paulo: 2018

THOREAU H. D. Walden. Editora L&PM - Porto Alegre: 2014

 
 
 

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